quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cada um cria pra sua vida o fantasma que quer




-Quem é o moço da foto?
- O senhor não conhece?
- Parece um rosto conhecido, mas não sei quem é, bonito ele.
- Imagine pai, poderia ter sido seu filho.

 (e foi, mas o Alzheimer não permitia que ele se lembrasse disso.)

-Sabe moça, faz muito tempo que não assino nada, como é mesmo que se escreve meu nome?
- J-O-Ã-O, faça bem devagar, não te problema, quer que eu faça num papel pra você copiar?
- Sim, João da Silva Reis, eu só não lembro muito bem como é que se faz as letras, sabe moça, faz muito tempo que eu não assino nada.
- Então vamos lá seu João, em cima da linha, vamos começar?
- Sabe moça, é que faz muito tempo que eu... Quem escreveu João? Ah, fui eu, sim fui eu. Eu era um homem muito forte e saudável, fazia coisas de madeira, tipo portas, janelas e móveis, eu esqueci como chamam as pessoas que fazem essas coisas.
- Marceneiro pai, você era marceneiro.
- Então moça, era isso que eu fazia mas agora não faço mais, me dói o ombro e também está frio demais e além do mais... eu preciso assinar? Já faz muito tempo que não assino nada.

A moça sabia de parte da história, ele era um fantasma na história de alguém, mal sabia porque estava ali, acerto de contas, sabe? A filha que o trouxera, tinha suas culpas e medo de arrumar alguns fantasmas para si, disse que se dava pra acertar as contas nessa vida melhor não deixar pra próxima.

E a moça, embora um pouco triste, sentiu-se presenteada de poder servir de instrumento para esse pequeno acerto de contas, porque por mais triste que toda a história fosse, era de grande aprendizado, e tinha que estar com a alma e o coração bem aberto para conseguir entender, e ela estava.

Tem fantasmas que não dá pra evitar, mas os que a gente consegue, é bom engolir o orgulho e mandar embora logo de uma vez.
Consertar as coisas, não deixar acumular, eliminar o dito pelo não dito, o dito demais, o dito na hora errada, acabar com os afastamentos que só geram fantasmas.
Depois que para de doer a gente normalmente encontra os porquês. Mas a vida é assim, tem que passar pela dor pra encontrar o sentido.
O que não pode, é ficar carregando fantasmas, porque daí a vida fica pesada, a gente passa a regar a vivência com lágrima e tristeza.
Desde que ela viu como vez ou outra as pessoas podem ser más, e como essa maldade pode afetar quem está ao redor - como dói e assusta - ela está empenhada em consertar as coisas, tudo que possa ter feito de errado e que talvez atingiu o outro negativamente. Tudo isso pra não criar fantasmas na vida sem precisar, é como disse a moça: se dá pra ir zerando a conta nessa vida, melhor não deixar pra próxima. Tempos de passar a régua.

- Quem é o moço da foto?
- Um fantasma pai, apenas um fantasma.
- Eu preciso assinar? Faz muito tempo que não assino nada...





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